segunda-feira, 16 de abril de 2012

Peça destaca a permanência da tortura no Brasil, desde o AI-5 até os dias atuais

O espetáculo, baseado em texto de Augusto Boal, traça um interessante paralelo entre o Brasil de 1970 e o Brasil de hoje, revelando que a tortura ainda está muito longe de ser mera lembrança no passado nacional

A ditadura militar nunca terminou no Brasil. Ou, se terminou formalmente, na prática, a tradição ditatorial do regime ainda subsiste intacta. É isso o que se conclui assistindo à peça Torquemada 17 balas,
que teve sua última apresentação realizada no domingo (8), na Rua da Consolação, em São Paulo. Em breve o grupo pretende retomar a temporada, levando o espetáculo à periferia e São Paulo e a outras cidades do País.

Torquemada 17 balas é uma adaptação livre do conhecido texto Torquemada, de Augusto Boal, escrito durante no período em que o dramaturgo permaneceu preso pela ditadura militar na fase de endurecimento da repressão.

O texto de Boal era um depoimento pessoal e uma denúncia dos métodos de tortura implementados pela ditadura em larga escala a partir de 1968. A presente adaptação, Torquemada 17 balas, é uma espécie de atualização do texto do dramaturgo, o que é feito com muita competência a partir de uma criação coletiva da companhia GTO da Garoa (Grupo de Teatro do Oprimido).

Partindo do texto de Boal, o grupo estendeu a denúncia da ditadura para o regime político nos dias de hoje, o que deu um novo frescor ao drama, aproximando-o também do que fora a intenção original do dramaturgo.

Em 1971, quando Augusto Boal tomou a decisão de expor os métodos de tortura dos quais ele fora vítima e que naquele mesmo momento era prática corrente do governo, ele expôs muito claramente um princípio de dramaturgia, voltado, não em reapresentar temas clássicos ou episódios históricos que destacassem os problemas políticos contemporâneos por mera analogia, mas em criticar problemas da vida atual a partir de um relato direto. Escrito em 1971, o texto se passava no mesmo ano e denunciava a ditadura de maneira frontal e sem metáforas. Apesar do título da obra aludir ao grande tirano da Santa Inquisição espanhola, Tomás de Torquemada, a peça não tem qualquer intenção de falar sobre o antigo regime de terror europeu, mas apenas pretende enfatizar o caráter hediondo da ditadura brasileira.

Se fosse apresentado hoje da maneira como foi escrito por Boal, é certo que o texto perderia muito de sua força original. Em outras palavras, é um texto que exige, pela própria natureza dele, ser “atualizado” sempre que levado à cena. É isso o que se dispôs a fazer o GTO da Garoa.
A montagem é muito pertinente em um momento em que há uma enorme pressão popular pela abertura dos documentos secretos da ditadura. Obviamente que há também uma pressão no sentido oposto, partindo de dentro do regime, contra que os documentos sejam revelados. O que é certo é que muitos figurões que circulam impunemente pelos corredores do governo teriam suas carreiras políticas encerradas caso viesse à tona a conexão deles com notórios torturadores. O Brasil, entre todos os países latino-americanos que viveram sob regimes militares, é o país onde mais nitidamente o processo de reabertura foi feito em comum acordo com líderes da ditadura. A impunidade aqui é escandalosa e são notórias as figuras do velho regime, como José Sarney ou Paulo Maluf, que não apenas não foram punidos, como ocupam ainda posições dirigentes em seus partidos ainda hoje.

É ressaltando a impunidade dos torturadores que começa a peça Torquemada 17 balas, a partir de depoimento de vítimas torturadas pela ditatura.
O espetáculo destaca os métodos de interrogatório e tortura utilizados pelos militares a partir do texto original de Boal que registrou em Torquemada como ele mesmo foi torturado.

Em um segundo momento, a peça é transportada para os dias de hoje e Torquemada 17 balas abandona o texto de Boal. A partir daí, dois jovens da periferia serão submetidos a um tratamento semelhante àquele do dramaturgo em 1971, não mais pelos militares, mas agora pela polícia, herdeira dos mesmos métodos de intimidação, coação e – o que muitos ainda tentam negar –, de tortura da ditadura.

Uma das personagens se levanta em busca de justiça contra a violência policial. Recorre a políticos, à Justiça, à imprensa, mas acaba por constatar que todos fazem parte de uma única ordem política contra a qual, sozinha, é incapaz de lutar.

Ergue-se, assim, diante deles, a consciência de estar vivendo no mesmo Brasil de violência e arbitrariedades que foi o Brasil do regime militar. A diferença é que o Brasil de agora encobre os mesmos procedimentos de outrora com uma aparência de regime democrático. Mas “democracia”, realmente é uma coisa que o regime brasileiro nunca conseguiu se tornar de fato, mesmo hoje, quase trinta anos após a derrocada da ditadura. Destacar esse fato é justamente a grande virtude de Torquemada 17 balas.

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