sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Baudelaire, as revoluções francesas e o nascimento da poesia moderna

Em 31 de agosto de 1867 morria o poeta Charles Baudelaire. Sua poesia pioneira nasceu sob o fogo revolucionário de 1848. Duas décadas mais tarde eclodia a Comuna, e a tradição de Baudelaire seria retomada por uma nova geração

O poeta Charles Baudelaire, iniciador da tradição moderna da poesia.
Em meados do século XIX, poucos anos depois das revoluções de 1848 que se alastraram por toda a Europa, era lançado um livro de poemas que viria a se revelar um dos grandes clássicos da literatura mundial, eram as Flores do mal, de Charles Baudelaire, cuja primeira edição foi publicada em 1857.

Baudelaire era então já uma importante figura dos círculos da intelectualidade de Paris, amigo de pintores, como o romântico Eugène Delacroix e o realista Gustave Courbet; e de filósofos, como o anarquista Joseph-Pierre Proudhon. Dono de um estilo de vida boêmio e dissoluto, Baudelaire começou a ganhar notoriedade entre a intelectualidade francesa ainda no início da década de 1940, com seus artigos de crítica de arte em defesa de pintores marginalizados das artes de Paris. Seu primeiro texto famoso na época, que despertou a ira conservadora, foi sua crítica sobre o Salão de Paris de 1845, atacando os conservadores e criticando a ausência, na exposição, dos melhores pintores da França naquele momento, destacando-se aí sua defesa da obra de Delacroix. Nos anos seguintes, Baudelaire se afirmou com um dos mais importantes defensores da pintura romântica, e de Delacroix como o maior pintor da França, atacando, assim, frontalmente as instituições acadêmicas e o governo francês, que detinha o monopólio dos salões.

Nesses anos Baudelaire era alvo também de duros ataques dos moralistas pelas poesias que publicava em periódicos como a Revue des deux mondes, poemas de uma agressividade, sensualidade e realismo incomuns.

Esses escritos de Baudelaire, tanto sua obra ficcional quanto os textos de crítica, eram parte de um amplo movimento de oposição crescente ao regime monarquista parlamentar de Luís Filipe de Orleans, o “rei burguês”, que ganhou fôlego a partir da crise econômica de 1846, culminando na Revolução de 1848, que eclodiu não apenas na França, mas em vários outros países dentro e fora da Europa.

Baudelaire tomou na ocasião parte ativa entre as barricadas de Paris, escrevento também para um jornal literário de orientação revolucionária, o Le Corsaire-Satan.

Apesar de Flores do mal aparecer somente em 1857, a redação de seus poemas haviam começado mais de uma década antes. É uma obra representativa, nesse sentido, do período mais crítico do regime político francês naquele momento: os momentos finais da monarquia de Luís Filipe, o período de crises que se estende até 1851, com o golpe de estado dado por Napoleão III, e ao movimento de oposição ao regime direitista de Georges-Eugène Haussmann, prefeito do Sena a partir de 1853, e ao Segundo Império de um modo geral.

Em alguns poemas de Flores do Mal, é bastante nítida a crítica lançada por Baudelaire ao regime burguês, usando as imagens simbólicas que são típicas em sua poesia. Em Caim e Abel vê-se um retrato da miséria da população operária em contraste com a opulência em que vivia a burguesia:

“Raça de Abel, tuas sementes
E teus rebanhos férteis são
Raça de Caim, teus parcos dentes
Rangem de fome e privação
Raça de Abel, teu ventre aquece
Junto à lareira patriarcal
Raça de Caim, treme e padece
Em teu covil, pobre chacal!
Raça de Abel, goza e pulula!
Teu ouro é pródigo em rebentos;
Raça de Caim, refreia a gula,
Ó coração que arde em tormentos!
Raça de Abel, cresces e brotas
Como os insetos do arvoredo;
Raça de Caim, por ínvias rotas,
Arrasta os teus à infâmia e ao medo”.
...

Outro poema, O cisne, poderia ser interpretado como uma imagem simbólica das lutas de 1848, ao comparar o cisne, livre de seu cativeiro, ao proletariado de Paris erguendo sua cabeça aos céus. No poema ele escrevia:

“Um cisne escapava enfim ao cativeiro
E, nas ásperas lajes os seus pés ferindo,
AS almas plumas arrastava ao sol grosseiro.
Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo,
No pó banhava as asas cheias de aflição,
E dizia, a evocar o seu lago natal
Água, quando cairás?
Quando soarás trovão?
Eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal,
Tal qual homem de Ovídio, às vezes num impulso,
Erguer-se para o céu cruelmente azul e irônico,
A cabeça a emergir do pescoço convulso,
Como se a Deus lançasse um desafio agônico!”

Flores do mal não foi apenas uma obra de conteúdo revolucionário e inovador, expressando em certa medida os ideais socialistas que tomavam conta da sociedade naquele momento, mas também uma obra esteticamente avançada, que, décadas mais tarde, seria identificada como uma obra precursora da poesia moderna.

O jovem Arthur Rimbaud, em 1871 – o ano da Comuna de Paris, que o poeta apoiou entusiasticamente –, vivendo a crise revolucionária final do governo de Napoleão III, escreveria sua famosa carta a Paul Demeny, a chamada Carta do vidente, sua carta-manifesto onde realizaria um balanço de toda a tradição pregressa da poesia francesa até aquele momento, situando Baudelaire como uma figura única e espetacular, o guru da poesia da nova geração. E a nova geração da qual Rimbaud fazia parte, era a dos poetas simbolistas, os novos poetas marginais de Paris e os fundadores da poesia moderna do século XX, grupo composto por figuras como Paul Verlaine (que tomou parte diretamente na Comuna de Paris), e Stéphane Marllarmé, o principal criador da nova geração.

Desse modo, a tradição da poesia moderna nasce e se desenvolve a partir da iniciativa de poetas revolucionários que elaboraram suas obras a partir do impacto direto que teve sobre eles os dois acontecimentos revolucionários mais importantes do século XIX no mundo: a Revolução de 1848, com Baudelaire; e a Comuna de Paris, em 1871, com Rimbaud, Verlaine etc.

Depois desse impulso fundamental, as novas gerações de artistas dariam uma larga contribuição à consolidação dessa nova arte da palavra, fato que se cristalizaria plenamente, no entanto, apenas com o advento de um terceiro acontecimento político capital da história humana recente: a Primeira Guerra, em 1914, que produz, na esteira da devastação provocada por ela, a conclusão e a negação daquela tradição, com os movimentos dadá e surrealista.
 
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