Poeta, contista, novelista, estudioso e teórico da literatura negra, Oswaldo de Camargo é uma das mais importantes personalidades desta tradição literária, escritor considerado um elo entre as gerações de escritores negros das décadas de 1930 e 70
No último mês de outubro, completou 75 anos o grande poeta Oswaldo de Camargo, uma das figuras centrais no desenvolvimento de uma tradição literária negra no Brasil. Sua importância segue em dois sentidos. Primeiro especificamente como autor. Oswaldo é um dos poetas mais representativos desta tradição literária, um dos poucos a cultivar o rigor formal a partir de premissas de influêsncias parnasianas e simbolistas, revelando assim ser ele também um dos poetas da Geração de 45 que buscavam resgatar um maior rigor na forma poética diante do colapso do modernismo de 22. É também um dos mais fortes autores da literatura negra, autor de algumas das maiores obras-primas desta tradição poética.
Oswaldo de Camargo é não só um autor importante pelo que escreveu, mas pela posição privilegiada que ocupa entre as diferentes gerações de escritores negros. Pertencente à geração de autores negros da década de 1950, ele, junto à Associação Cultural do Negro, conheceu e travou relações com intelectuais de grande importância do movimento negro. Oswaldo, entre outros autores, conheceu pessoalmente Solano Trindade, o grande “poeta do povo”, militante comunista e agitador cultural por toda a vida. Deste modo, profundo conhecedor da tradição da imprensa negra, da atividade das associações culturais, das figuras mais importantes da intelectualidade negra das décadas de 1930 e 50, ele viria a ocupar um lugar importante entre os jovens escritores negros da década de 1970, geração que representou uma etapa de culminação daquela longa tradição. Ele foi o elo entre estas duas etapas de evolução da literatura negra. Entre os escritores da geração de 70, Oswaldo irá ocupar uma posição chave, como fundador do primeiro e importantíssimo grupo organizado da literatura negra brasileira, o Quilombhoje, formado com fins á defesa e divulgação da literatura negra.
Sua importância até aí já seria considerável, mas a estas contribuições se acrescenta uma igualmente importante, como estudioso, pesquisador e teórico da literatura negra. Oswaldo de Camargo foi autor de uma obra pioneira de extraordinária importância para o negro brasileiro: O Negro Escrito, o primeiro trabalho abrangente de pesquisa sistematizando e agrupando as diversas manifestações da presença do negro na literatura brasileira até o momento em que o negro surge como um agente ativo desta literatura e passa a desenvolver uma tradição própria nas letras nacionais. Este livro é ainda hoje uma obra essencial para o estudo e o entendimento do que vem a ser a literatura negra e quem são seus autores.
É deste modo, com imenso prazer que Causa Operária dedica esta edição do Caderno de Cultura a uma pequena homenagem a Oswaldo de Camargo, esta grande personalidade do movimento negro que completou este ano 75 anos de vida.
A descoberta do racismo
Nascido em 1936, em Bragança Paulista, interior de São Paulo, o poeta Oswaldo de Camargo estudou dos 13 aos 17 anos no Seminário Nossa Senhora da Paz, de onde ele saiu em 1954, aos 18 anos.
Ele tornou-se órfão antes dos seis anos, e por isso, criado desde cedo em instituições católicas. Segundo conta o próprio Oswaldo, a consciência de sua cor, bem como a percepção de que existia um sistema informal de segregação racial no Brasil, surgiu a ele ainda aos 12 anos. O futuro poeta nesta idade sentia uma forte vocação religiosa e mostrou interesse em tornar-se sacerdote da Igreja.
Os padres holandeses da instituição em que estudava começaram na ocasião a procurar um seminário em que ele pudesse ingressar. Para o espanto destes estrangeiros, não havia nenhum seminário em toda a região que recebesse negros. O jovem tinha, portanto 12 anos quando percebeu que devido a sua cor, muitas das portas da sociedade, para ele estariam fechadas. Era uma questão que parecia se colocar acima de todos os valores espirituais que ele havia aprendido desde cedo, uma questão que imediatamente desencadeou uma crise espiritual, de identidade, de contradição com o mundo que, segundo ele mesmo reconheceria, estaria na base de seu interesse futuro pela literatura. Ao se defrontar com esta questão, ele passaria a cultivar um sentimento comum a todos os negros da Diáspora, em todos os países onde o negro existia como uma minoria ou como uma população oprimida em um país controlado por uma burguesia branca. Foi este o início de sua identificação futura com a literatura negra.
Após muitos meses de procura, os padres descobriram finalmente um lugar para o pequeno negro, um seminário tinha à frente também padres holandeses. Era o Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto.
Nos anos que se seguiram, naquele ambiente de reclusão e austeridade, Oswaldo teve grande oportunidade de desenvolver sua propensão para as artes e em particular, para a literatura. Aos 16 anos, nas missas realizadas na catedral de Rio Preto, ele descobriu a música e começou a se dedicar ao órgão desde então. Aos 17, ele era já o principal organista da catedral, chegando a realizar algumas composições e letras próprias. Ele se destaca também rapidamente nas letras, sendo também escalado para ler discursos e fazer homenagens nas solenidades realizadas tanto no seminário quanto na catedral. Ele escreveu seus primeiros poemas aos 16 anos também, graças ao estímulo de um dos estudantes, um rapaz erudito que escrevia poesias em latim e grego. Sua primeira influência e fonte de inspiração eram os poetas ultrarromânticos como Fagundes Varela e Casimiro de Abreu, a partir dos quais escrevia versos de inspiração religiosa, cantando Deus, a natureza, os pássaros. Ele aprendeu aí a adorar a literatura, a sentir prazer pelas ideias elevadas expressas em versos, e desenvolveu desde então “o deslumbramento pela literatura, deslumbramento diante da literatura”, segundo suas palavras.
As associações culturais do movimento negro
Uma experiência cultural importante também foi participar da organização de um teatro no seminário. Foram atividades como estas que alimentavam já sua vontade de dedicar sua vida às artes.
Até aí, ele se encaminhava para seguir carreira como seminarista, mas aos 17 anos esta situação muda. Novamente ele se defronta com o problema racial. Quando ele descobre que o Seminário Maior do Ipiranga não aceitaria ali seu ingresso pelo fato de ser ele um negro, Oswaldo de Camargo finalmente abandona sua ideia de tornar-se padre. Tomado por uma grande crise pessoal, ele sai do Seminário Menor e muda-se para a capital paulista, onde mantém-se ainda próximo a organizações católicas, e torna-se organista na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. É nesse momento que começaria sua atividade jornalística e sua militância no movimento negro.
Através de um anúncio no jornal ele descobre a Associação Cultural do Negro, que passa a freqüentar. Ali ele conhece e trava relações com alguns dos mais importantes membros do movimento negro brasileiro, alguns membros da Frente Negra, e, entre outros, o escritor Sérgio Milliet, que havia sido amigo pessoal de Solano Trindade e o também escritor Afonso Schmidt. O próprio Oswaldo de Camargo relembra estes anos: “A partir deste momento começo a ficar a par de que há uma história de lutas que começaram no início do século com a imprensa negra”.
Nestes anos o poeta começa a escrever mais intensivamente poemas que eram, em sua maioria, voltados à leitura de seu próprio círculo de amizades. Não eram tanto poemas pessoais, mas eram fundamentalmente escritos políticos, de ocasião, escritos para atividades, eventos, e voltados a divulgar de uma forma mais ampla o problema do negro dentro da Associação Cultural do Negro. A partir de 1955 ele passa a trabalhar também como revisor no jornal O Estado de S. Paulo, que lhe forneceria também uma importante experiência jornalística.
Um Homem Tenta Ser Anjo
É quando Oswaldo de Camargo trabalhava como diretor de cultura na Associação Cultural do Negro que ele publica, em 1959, seu livro de estréia, a coletânea poética Um Homem Tenta Ser Anjo. Esta obra trazia poemas com influências diversas de Fernando Pessoa, Sá Carneiro, Manuel Bandeira, Hilda Hilst, Rainer Maria Rilke. Uma obra de importância pois era ele então praticamente o único negro de sua geração a cultivar uma expressão moderna, enquanto que outros autores negros ainda não conseguiam se desvencilhar da influência do romantismo. Um Homem Tenta Ser Anjo é uma obra que apresenta bem o conjunto de influências que haviam sido assimiladas pelo poeta, com uma ênfase no rigor formal dos versos. Nota-se aí a influência do parnasianismo e do simbolismo. Um dos poemas importantes presentes nesta obra é Auto-retrato:
“Ver-me assim é ver num campo aberto
Um cimo verde, um horizonte azul,
E uma alma em meu vergel interno,
A qual eu pastoreio e alimento.
Gosto de olhar a minha revolta alma
Aqui deste rochedo em que me assento...
Tenho um riacho também que me tortura,
Bucólico e terno...
Às vezes, ao voltar do meu rochedo,
Após um dia todo de labor,
Lavo o rosto em sua água e torno-me
Amável e sonhador...
A alma que alimento e pastoreio
Passeia em minha face juvenil
Nos dias de excursão, paisagens outras,
Cansada deste pífaro que toco
Aqui neste rochedo em que me assento...”
Seu segundo livro é publicado em 1961, 15 Poemas Negros. Nesta obra, ele pela primeira vez adentra uma referência mais explícita ao negro. O poema mais marcante desta coleção, muito festejado na época de seu lançamento, foi a poesia confessional Fragmentos em Prosa, poema inspirado por Hilda Hilst, pela impressão que o poeta teve ao conhecer pessoalmente a escritora. Oswaldo de Camargo ficou tão deslumbrado por ela que escreveu este texto, uma reflexão sobre a distância entre os mundos do negro e do branco.
Curiosamente, nas mais de vinte páginas que Florestan Fernandes escreveu como prefácio desta obra, ele não cita este poema extraordinário. O mistério desta omissão é que este poema só foi incluído nesta coletânea quando o livro já estava na gráfica, impresso em linotipo. Prestes a rodar o material, o dono da gráfica comentou que, pelo que o poeta já havia gastado, ele tinha direito a 10 páginas adicionais no livro, e perguntou se o poeta não gostaria de inserir outros textos ali. E ele acrescentou este Fragmentos em Prosa, um poema de sete páginas. Outros poemas presentes no livro merecem também destaque, uma delas é Meu Grito:
“Meu grito é estertor de um rio convulso...
Do Nilo, ah, do Nilo é o meu grito...
E o que me dói é fruto das raízes,
ai, cruas cicatrizes!,
das buscas florestas da terra africana!
Meu grito é um espasmo que me esmaga,
há um punhal vibrando em mim, rasgando
meu pobre coração que hesita
entre erguer ou calar a voz aflita:
Ó África! Ó África!
Meu grito é sem cor, é um grito seco,
é verdadeiro e triste...
Meu deus, porque é que existo sem mensagem,
a não ser essa voz que me constrange,
sem ecos, sem lineios, desabrida?
Senhor! Jesus! Cristo!
Porque é que grito?”
A angústia e a revolta do negro na literatura
Uma das notas mais marcantes da obra de Oswaldo de Camargo tanto em prosa quanto em verso, é seu forte sentimento de dilaceramento interior, e que fica claro no poema acima, uma crise profunda que reflete uma contradição comum a todos os negros da Diáspora, mas que nem sempre é expresso da forma clara como o fez este poeta. Sua crise é produto do choque de consciência da situação de proscrição social do negro. Um homem criado entre uma sociedade dominada por uma burguesia branca, da qual assimilou os valores e a cultura, da qual, finalmente, é parte integrante, orgânica, mas que é ao mesmo tempo, a todo momento, colocado à margem dela, tem esta sua condição de “cidadão” colocada em xeque, e que se vê, na prática, entre dois mundos.
A evolução de sua poesia mostra um caminho comum a muitos dos escritores negros, avançando da angústia para a revolta, para uma situação de cada vez maior radicalismo. Este tom mais radical marcaria alguns dos melhores poemas de Oswaldo de Camargo na década de 1970, um produto da radicalização do movimento negro como um todo. O poema Atitude marca bem este sentimento:
“Eu tenho a alma e o peito descobertos
à sorte de ser homem, homem negro,
primeiro imitador da noite e seus mistérios
Triste entre os mais tristes, útil
como um animal de rosto manso.
Muita agonia bóia nos meus olhos,
inspiro poesia ao vate branco:
“... Stamos em pleno mar...”
Estamos em plena angústia!
(...)
Anoitecidos já dentro,
tentamos criar um riso,
não riso para o senhor,
não riso para a senhora,
mas negro riso que suje
a rósea boca da aurora
e espalhe-se pelo mundo
sem arremedo ou moldagem,
e force os lábios tão finos
da senhorita Igualdade!
Estamos com a cara preta
rasgando a treva e a paisagem
minada de precipícios
velhos, jamais arredados!
Enforcaram-nos irmãos,
com laços de mil enganos!”
...
O poeta em prosa
Em 1972 ele publica seu primeiro livro em prosa, O Carro do Êxito. Para Oswaldo de Camargo escrever este texto em prosa é uma novidade absoluta. Não só para ele, poeta, mas para a literatura negra brasileira de um modo geral, que era até então – e é também em grande medida ainda hoje – uma tradição que se expressa fundamentalmente em versos.
É uma característica comum à literaturas em fase de formação, pelo simples fato da expressão poética exigir – em geral – menor elaboração do que uma idéia em prosa, que requer maior planejamento, concentração, esforço. Este traço é comum à literatura negra em praticamente todos os países em que ela se manifestou, tendo conseguido consolidar perfeitamente uma tradição em prosa, com grandes autores e grandes obras, somente nos Estados Unidos. Nos demais países, apesar de haverem inegavelmente obras em prosa essenciais, a poesia é ainda a expressão primordial desta literatura.
Deste modo, é de grande importância o surgimento deste trabalho de Oswaldo de Camargo, uma expressão de maturidade desta literatura negra. Formado por um conjunto de contos, o tema tratado em O Carro do Êxito era também igualmente novo, a luta de um negro, recém chegado à cidade grande, buscando conseguir ingressar nesta sociedade controlada por brancos, apresentando todas as conseqüências desta luta, seus sonhos destruídos, sua angústia, desilusão e isolamento. É essencialmente uma crônica da vida do negro, não nas longínquas cidades despovoadas no interior do país, mas defrontando-se com o preconceito e a marginalização exatamente no coração da sociedade que o oprime. A grande cidade que inspirou o ambiente cosmopolita foi justamente São Paulo, onde Oswaldo de Camargo viveu de fato muitas destas experiências.
Diante do livro, o leitor é inserido diretamente no interior do movimento negro paulistano das décadas de 1950, 60, nos ambientes de acaloradas discussões, nas redações dos jornais da imprensa negra, lado a lado com os solitários adolescentes negros ansiosos por encontrar seu lugar ao sol em um mundo onde estão permanentemente deslocados. Daí que surge com grande força também a importância dos grupos negros que se formavam justamente como forma de combater este fato.
O livro começa com o conto Oboé, em meio a uma reunião típica da imprensa negra, onde negros exaltados levantam-se citando Castro Alves, a abolição, a necessidade de uma segunda abolição. O livro é muito rico na descrição destas atividades tão típicas do movimento negro. Outros contos ainda presentes no livro, histórias como a amargura de um jovem músico negro que, convidado a viver na casa de seu maestro, descobre ainda vestígios de racismo em sua maneira de tratá-lo. Há ainda o comovente episódio em que outro negro, jovem amante de literatura, vai fazer uma entrega em um bairro nobre e tem uma conversa com uma garota branca que o recepciona. Todas as histórias trazem ao centro personagens jovens, e trata justamente das expectativas da juventude negra em descobrir seu lugar, um meio em que possa atuar livremente.
O Quilombhoje
O ano de 1978 é um ano da maior importância na vida de Oswaldo de Camargo, da literatura negra brasileira e do movimento negro de um modo geral. A ditadura estava em plena crise, assediada pelas mobilizações estudantis e operárias. Certa noite, reunidos no bar Mutamba, próximo à antiga sede do Estadão, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Luiz Silva [o Cuti], Abelardo Rodrigues e Lescano, em meio a uma acalorada discussão, decidem formar um grupo literário, um grupo que defendesse e divulgasse abertamente a literatura negra. Nasceria aí o grupo Quilombhoje (nome nascido da fusão das palavras Quilombo + hoje, a ligação entre o passado, o presente e a luta do negro). Ele era o produto da militância política, literária e jornalística destes escritores. Foi o primeiro e mais importante grupo literário negro do Brasil, pois até então a literatura negra havia se desenvolvido através de figuras isoladas, e nunca em torno de um grupo que tivesse a defesa da literatura negra como eixo de atuação. O Quilombhoje pretendia destacar justamente o caráter de resistência da literatura negra, e de isolamento do negro nos dias de hoje, morador de um quilombo moderno.
Em 1978, surge também A Descoberta do Frio, uma obra de literatura fantástica. Ele tratava de uma forma simbólica do problema da proscrição social do negro, de sua invisibilidade em um sociedade racista. Sua personagem sofre de uma doença misteriosa, que apesar de grave, é pouco notada pelas pessoas ao seu arredor, que atribuem sua doença a uma gripe, uma malária. A situação em que ele se encontra tem duas conotações, o racismo e a indiferença. Ele é vítima de ambas, e este é o seu mal. É uma questão que pode dizer respeito tanto ao branco quanto ao negro. Uma indiferença que pode se manifestar tanto no branco quanto no negro anestesiado, dominado pelo branco.
No mesmo ano, é lançado também o livro de poemas O Estranho. Publicado quase duas décadas desde 15 Poemas Negros, esta obra revelava a transformação da poesia de Oswaldo de Camargo neste período. Ele levava mais longe o problema do rigor da forma poética, com escritos que mostravam mais claramente a identificação de Oswaldo de Camargo com a Geração de 45, com diversas premissas comuns às daqueles poetas.
O Negro Escrito
Um dos mais importantes estudos sobre a literatura negra no Brasil surge em 1987, a obra pioneira O Negro Escrito – Apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira, ainda hoje um estudo sem igual e de extraordinária importância para o movimento negro e para a cultura brasileira em geral. O livro era produto tanto dos interesse pessoal de Oswaldo de Camargo pela literatura negra, quanto de sua natural inclinação à atividade jornalística, de pesquisa, estudo e sistematização das diversas etapas e manifestações da literatura negra nacional. Ao longo de seus anos como jornalista, ele já havia escrito já dezenas de artigos, e a elaboração de um trabalho como este era um desenvolvimento natural de sua atividade. A isso se acrescia a grande importância para ele e outros negros de suas relações, de haver uma sistematização abrangente de todas as manifestações do negro na literatura.
O livro acompanhava assim justamente toda a trajetória do negro desde sua chegada ao Brasil, passando pelo modernismo e as gerações seguintes, de 1930, 50, 70, 80, em uma obra cuja proposta, como indicava o título, era apresentar apenas alguns apontamentos iniciais, um estudo introdutório ao problema da literatura escrita a partir de um “eu” negro no Brasil. Em Negro Escrito, Oswaldo de Camargo não se preocupava em desenvolver uma análise aprofundada dos autores negros, mas sinalizar alguns caminhos por onde se dirigira a literatura negra e que serviria como uma bússola para o leitor se localizar no interior desta rica, porém ainda muito pouco conhecida tradição literária.
Encerrada a parte analítica da obra, há uma breve mas fundamental antologia com textos que destacam presença do homem negro no País, em textos de grandes escritores brancos e negros, avançando desde as manifestações mais embrionárias desta tendência literária, até os mais lúcidos e radicais poetas negros da geração de 1970.
Foi por ter se colocado como esta bússola que Negro Escrito possui ainda hoje uma importância extraordinária não apenas para a literatura negra brasileira, mas para a literatura negra em geral. Apontamentos que traçam o desenvolvimento da consciência do negro no maior país da América Latina e uma das maiores nações negras do mundo. Negro Escrito era ao mesmo tempo uma história literária e uma história do negro brasileiro. Por ser capaz de relacionar e trazer à tona estas questões, por ter mostrado o elo indissolúvel que ligava as poesias de Castro Alves, Luis Gama, Cruz e Souza, Lino Guedes, Solano Trindade, até os poetas mais jovens – e de todos estes inseridos em um movimento negro internacional –, em uma única tradição, coerente, combativa, é que este livro de Oswaldo de Camargo foi um marco no processo de amadurecimento da consciência do movimento negro brasileiro. Ele tornou mais claro, para centenas, milhares, de escritores, o sentido e a importância desta tradição literária especificamente negra.
Um guardião da literatura negra moderna
O impacto desta publicação entre as associações e organizações do movimento negro foi enorme. Pela primeira vez aparecia no meio negro um livro escrito por um negro tratando da literatura que o negro escrevia. Este fato, de ter sido um negro, membro atuante do movimento, o autor foi também de grande importância, pois, deste modo, Negro Escrito foi capaz de apresentar autores totalmente desconhecidos do meio branco, e cujas qualidades e importância para o negro – pelos problemas específicos que expressavam em seus textos – só poderiam ser percebidos por um negro. A parte do livro, por exemplo, dedicada aos autores do Embu, possui esta característica. São escritores menores de um ponto de vista estritamente estético, mas de grande valor para a coletividade negra pelos sentimentos e problemas abordados.
Nos anos seguintes, Oswaldo de Camargo foi se consolidando cada vez mais como uma das grandes autoridades em literatura negra no Brasil, realizando palestras e trabalhando em incontáveis estudos e artigos. Hoje ele é o mais respeitado especialista no assunto.
Por seus inúmeros textos e estudos sobre o poeta Cruz e Souza, em 1998 Oswaldo de Camargo ganhou o troféu Cruz e Souza da Secretaria de Cultura de Santa Catarina, estado natal do poeta simbolista.
Um estudo recente de Oswaldo de Camargo foi lançada em 2009, a transcrição de uma palestra sobre o poeta Solano Trindade. A obra, Solano Trindade – Poeta do Povo, é também um estudo essencial no entendimento da importância da obra de Trindade no desenvolvimento da consciência do negro brasileiro.
Oswaldo de Camargo tem poemas e contos traduzidos para diversos idiomas em outros países, em inglês, espanhol, francês e alemão.
Hoje o poeta trabalha como coordenador de literatura no Museu Afro Brasil, em São Paulo. Ele também trabalha ainda ativamente em prol da divulgação desta rica tradição da literatura nacional, organizando obras de autores ou intelectuais menos conhecidos, divulgando nomes de figuras negras expressivas da vida cultural nacional e participando regularmente de palestras e debates sobre a literatura negra e seus autores mais representativos. Neste mês de novembro, mês atribuído à morte do grande líder quilombola, Zumbi dos Palmares, quando o poeta completa seus 75 anos, está saindo a segunda edição de sua novela A Descoberta do Frio.
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