27 de outubro de 2011
No segundo pós-guerra, Di Cavalcanti tornou-se um notório crítico da pintura abstrata que se desenvolvia no período. Sua crítica pode ser equivocadamente interpretada como uma defesa do realismo socialista, mas seria um equívoco que merece ser debatido
No segundo pós-guerra, Di Cavalcanti tornou-se um notório crítico da pintura abstrata que se desenvolvia no período. Sua crítica pode ser equivocadamente interpretada como uma defesa do realismo socialista, mas seria um equívoco que merece ser debatido
Emiliano Di Cavalcanti, ao lado de Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, foi um dos grandes nomes da pintura modernista da geração de 22. Da mesma forma que outros importantes nomes deste modernismo, como Oswald de Andrade e Pagu, ao longo da década de 1920, Di Cavalcanti acompanha a onda de radicalização, fruto da polarização da burguesia nacional que se preparava para a Revolução de 1930.
Já em 1926, simpatizante da luta da classe operária, ele ingressa no Partido Comunista Brasileiro, mantêm-se aí também no período de stalinização, e irá permanecer no partido até o segundo pós-guerra.
Uma questão que pode ser fonte de equívocos e merece ser debatida foi a tomada de posição de Di Cavalcanti contra a pintura abstrata. Certamente que sua concepção da arte era em grande medida influenciada pela própria defesa do PCB da doutrina do realismo socialista. O que, porém, seria um erro afirmar, é que sua concepção seria o próprio realismo socialista, e, a partir daí, impugnar sua posição, como também a posição de qualquer outro artista moderno em defesa de uma arte social.
São duas questões bem diferentes, mas que equivocadamente – e estimulada pela própria burguesia – são apresentadas como sendo uma única e mesma coisa.
O realismo socialista
O realismo socialista não foi uma determinada doutrina estética simplesmente. A arte realista, que aborda o cotidiano da vida dos trabalhadores, com temas políticos ou sociais, é uma corrente tão válida quanto qualquer outra. Se consistisse nisso o realismo socialista, nenhuma questão de maior relevância política seria travada nesse terreno, teríamos, quando muito, que discutir se cabe a um governo apoiar uma determinada corrente artística em detrimento de outras.
A questão é que esta é uma compreensão totalmente errada do que foi realmente o fenômeno do realismo socialista. Ele não foi a defesa de uma escola específica das artes e da literatura, mas, ao contrário, a tentativa de impor a todos os artistas, através do aparato repressivo do governo, uma determinada disciplina em seu trabalho criativo, de ditar um cânone para as artes. Esta ideia em si estava fadada ao fracasso, mas a questão também não se encerra aí.
Mais do que isso, o realismo socialista era uma ferramenta de controle sobre as artes. Ele não foi um movimento artístico ou uma defesa estética. Foi uma forma de introduzir no País uma política repressiva travestida de arte. A pretexto da instauração de regras formais a partir das quais a arte deveria ser produzida, a burocracia stalinista abriu caminho para um processo de censura das criações. Obviamente que todos aqueles que decidissem não se submeter aos cânones estabelecidos pelo governo eram imediatamente identificados como opositores políticos em potencial, e a partir daí, assediados de todas as formas. Em outras palavras, foi uma gigantesca operação de repressão e censura de toda a intelectualidade soviética, uma medida contrarrevolucionária que não encontra paralelo nem nos regimes monárquicos, que impunham através dos Salões Oficiais, um cânone oficial, com temas e técnicas rigidamente definidos. Naqueles tempos, porém, não existia um aparato repressivo organizado contra os que não se enquadrassem. A coação destes artistas contava antes, com o próprio consentimento destes, que voluntariamente se dispunham a adular seus monarcas.
O sistema organizado por Stálin era muito mais brutal, contava com a coação aberta dos artistas para que estes produzissem uma arte abertamente mentirosa. Através deste sistema, foram pintados milhares de quadros mostrando Stálin realizando grandes feitos que ele nunca realizou: por exemplo liderando a Revolução de 1917 em posição de muito maior destaque do que ele realmente teve, e escondendo verdadeiros líderes que, com o passar dos anos, ingressaram na oposição ao regime burocrático – o caso mais importante certamente foi a “limpeza” dos arquivos e da memória nacional a importância de Trótski na revolução. O mesmo se deu também na literatura. Romances, contos e novelas pseudorrealistas e pseudosocialistas inventando livremente uma nova história para a Revolução Russa e a luta contra o czarismo, na qual a burocracia emergia como um panteão católico, com santos e profetas, ao mesmo tempo em que os opositores eram demonizados.
No importante Manifesto da FIARI: Por Uma Arte Revolucionária Independente, escrito em parceria entre Trótski e o poeta André Breton, e assinado por Breton e Diego Rivera por questões políticas, há uma importante condenação desta operação reacionária: “Sob a influência do regime totalitário da URSS e por intermédio dos organismos ditos “culturais” que ela controla nos outros países, baixou no mundo todo um profundo crepúsculo hostil à emergência de qualquer espécie de valor espiritual. Crepúsculo de abjeção e de sangue no qual, disfarçados de intelectuais e de artistas, chafurdam homens que fizeram do servilismo um trampolim, da apostasia um jogo perverso, do falso testemunho venal um hábito e da apologia do crime um prazer. A arte oficial da época estalinista reflete com uma crueldade sem exemplo na história os esforços irrisórios desses homens para enganar e mascarar seu verdadeiro papel mercenário”.
Em outras palavras, não é que o realismo socialista não fosse uma iniciativa revolucionária, ele não era nem mesmo uma iniciativa artística. Foi uma política repressiva ultrarreacionária travestida de arte, cuja finalidade era tão somente dar alguma sustentação a um regime político sem qualquer apoio popular. Esta é a verdadeira origem desta operação, a grande fraqueza do regime burocrático, que para se manter no poder teve de suprimir toda e qualquer opinião independente no país.
A maneira correta de se entender o realismo socialista é como uma mera extensão dos processos de perseguição e assassinato da oposição ao governo burocrático instaurado pelo stalinismo.
A defesa da arte social
Feitas estas considerações, é importante destacar que Di Cavalcanti não compreendia a questão nestes termos. Sua arte, apesar de figurativa, nunca foi realista nos termos apresentados pelo realismo socialista, e seus temas sociais, também nada tinham a ver com a exaltação rasteira dos “grandes líderes” do stalinismo internacional. Desde a década de 1920, o pintor foi sempre fiel à sua própria forma de expressão, um produto típico do primeiro modernismo.
Em uma entrevista de 1948 publicada no jornal Folha da Noite, ele expressou bem suas posições: “o que se chama abstracionismo é uma teoria que vem do fim da primeira grande guerra e que se repete no fim desta, agora, conjuntamente com o existencialismo. As características ‘niilistas’ dessa já sovada estética e sua inadaptação social demonstrou o seu fundo mórbido e desesperado. É arte de homens vencidos, sobretudo pela solidão intelectual em que se colocaram. Eles querem superar a realidade sem alcançar a grandeza total da realidade de nossa época, esse majestoso movimento de encontro dos homens comuns para uma comunidade humana, onde a autenticidade do esforço individual não há de ferir a sensibilidade coletiva. A noção romântica do super-homem ruiu, a noção de uma super-arte há de ruir também”.
No caso de Di Cavalcanti, sua tomada de posição de uma arte figurativa era antes a manifestação de seu compromisso de fazer uma arte ligada à realidade social brasileira, era de fato uma verdadeira defesa “de escola”. Sua condenação da pintura abstrata estava ligada às próprias concepções do artista sobre o significado destas tendências. Nada mais natural para um pintor que se formou no interior de um movimento de tendências revolucionárias, ligado inicialmente ao nacionalismo burguês e que mais tarde evoluiu para ao socialismo. Seu interesse artístico naturalmente voltou-se para o retrato de seus ideais políticos, incompatíveis com qualquer expressão abstrata. O conteúdo verdadeiro de sua condenação da pintura abstrata é a condenação de uma filosofia da “arte pela arte”, desvinculada de qualquer objetivo social maior, o que no caso dele é perfeitamente compreensível.
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