quarta-feira, 30 de novembro de 2011

William Bouguereau e o academicismo francês

O Nascimento de Vênus, por William Bouguereau.
Bouguereau é um dos maiores nomes do academicismo francês, escola que, apesar de ter sido duramente combatida pelos movimentos renovadores, inegavelmente levou a técnica pictórica a novos limites


William-Adolphe Bouguereau é um dos mais destacados nomes do academicismo francês, ao lado de pintores como Alexandre Cabanel, Jean-Léon Gérôme ou Paul Delaroche.
Nos dias de hoje, “pintura acadêmica” tornou-se sinônimo de conservadorismo, de convencionalismo, de arte superficial e de tudo de negativo que se possa atribuir a uma pintura. Esta é, porém, uma idéia equivocada e limitada sobre o assunto, produto das lutas que os artistas modernos travaram contra as convenções do passado.

A instituição acadêmica, bem como a pintura que ela produziu, foi a principal responsável pelo grande desenvolvimento e popularização da pintura na Europa a partir do século XVII.

Logicamente que como todo método, possuía enormes limitações, como, por exemplo, a falta de espaço para a inovação e a improvisação, que foi um dos pontos mais atacados por todos os movimentos renovadores da pintura. Por outro lado, este método de ensino foi responsável por levar a técnica da pintura a um nível de perfeição espantoso e inimaginável de ser atingido através dos antigos métodos artesanais de ensino de arte, típicos da era medieval. As academias foram instituições criadas pela burguesia e serviram para democratizar como nunca antes as técnicas da pintura, ocupando um papel fundamental no desenvolvimento desta arte ao longo de todo o século XVIII e XIX. Por trás destas instituições estavam os ideais iluministas e a crença na ciência, que colocou propositalmente a “criatividade” em segundo plano partindo da premissa de que, como qualquer ofício, a pintura poderia ser dominada por qualquer estudante dedicado, desde que seus métodos de ensino fossem sistematizados e colocados em prática de forma rigorosa, partindo de experiências coletivamente consagradas. Natural aí que o papel do “indivíduo” se tornasse bastante limitado.
Dante e Virgílio no inferno.

O grande triunfo deste método de ensino está impresso nas obras, tanto de artistas renovadores, criadores de escola como Jacques Louis David, como nas telas de pintores que, apesar de não se notabilizarem pela inovação, consolidaram-se como verdadeiros mestres no domínio das técnicas pictóricas. Este foi o caso de William-Adolphe Bouguereau.


Bouguereau foi autor de algumas das mais belas pinturas classicistas do século XIX. Seus temas mais comuns estão ligados à mitologia grega e passagens bíblicas, ainda que ele tenha também se dedicado à pintura de jovens camponesas, ciganos e temas cotidianos mais característicos da escola realista, sua contemporânea. Sua biografia, curiosamente, segue a trajetória de ascensão e queda do academicismo como pensamento dominante da burguesia francesa entre os séculos XIX e XX.


Sua pintura é herdeira do neoclassicismo de David, surgida em uma época em que a Escola neoclássica havia já conseguido se impor à sociedade burguesa. Como tal, Bouguereau era também adepto do iluminismo e dotado de uma filosofia humanista que motivaram seus quadros de temas mais populares.


Trajetória do artista


Eros e Psiquê.

Bouguereau nasceu em La Rochelle, em uma família de comerciantes de vinho e azeite. Ele estaria destinado a continuar o negócio da família se não fosse a intervenção de um tio, que o instruiu na juventude e insistiu que ele tivesse ensino superior. Sua inclinação natural ao desenho o levou a ingressar na Escola de Belas Artes de Bordeaux, onde rapidamente se destacou com suas telas.

Ele viveu alguns anos pintando temas religiosos para as paróquias da região até conseguir ingressar na mais importante academia da França, a Escola de Belas Artes de Paris. Nesta época, ele aprofundou-se nos estudos de anatomia à maneira dos mestres renascentistas, estudando cadáveres em aulas de dissecação.

Tornou-se discípulo de um dos mais renomados pintores acadêmicos de seu tempo, François-Edouard Picot, e em pouco tempo já se destacava como um proeminente representante do academicismo francês. Em 1850, quando o realismo lutava por impor suas idéias à sociedade, exaltando a população pobre e humilde como um tema digno da pintura, Bouguereau, totalmente alheio a tais problemas ganhava o Prêmio de Roma, pela sua grande composição mitológica Zenóbia encontrada por pastores nas margens do Araxe.


Ele morou por alguns anos em Roma, onde estudou mais detidamente a pintura renascentista, particularmente fascinado pelo primor técnico e sofisticação das obras de Rafael.

Sua fama na sociedade francesa cresceu ao longo de toda a década de 1850. Em 60, seu nome era também muito popular na Inglaterra e ele tornara-se já um dos mais requisitados pintores de sociedade, com suas obras vendidas por somas astronômicas. Suas telas, povoadas por ninfas, deuses, pastores, anjos e santos, casavam de fato com o gosto conservador da burguesia, que tinha seus quadros como excelentes peças decorativas para suas mansões, gabinetes e prédios públicos.

Em vida, Bouguereau foi considerado um dos maiores pintores do século XIX, tendo clientes em países tão diversos quanto os Estados Unidos, a Espanha e a Holanda.

A Onda.
A derrocada do academicismo

Alma Parens.

Seu nome e seu prestígio tornaram-se sinônimo da própria instituição acadêmica francesa, sendo ele não apenas pintor, mas também um político das artes, membro e líder intelectual no Instituto da França e presidente da Sociedade de Pintores, Escultores e Gravadores.

Era mais do que natural, portanto, que as novas gerações de inovadores da pintura vissem na arte de Bouguereau a própria antítese do que pretendiam, e, em último caso, o exato oposto do que deveria ser uma arte viva, ligada à realidade de seu tempo.

A telas de Bouguereau eram belíssimas, tecnicamente impecáveis, mas, obviamente, pelas próprias ligações que o pintor estabeleceu em vida, uma arte conservadora, ligada aos valores de uma sociedade que definhava, dependente dela e de seu gosto leviano, fútil.


Quando surge a jovem geração dos pintores impressionistas, avessos a toda tradição acadêmica, Bouguereau torna-se um de seus adversários ferozes. Será ele uma das figuras a combater, no interior das academias e salões oficiais, as novas técnicas impressionistas.


Estes artistas mais jovens, por seu lado, irão cunhar um termo irônico que denotava todo seu desprezo por esta arte para a decoração de salas luxuosas. Irão chamar de “bougueresco”, toda a pintura que considerassem artificiosa, falsa, afetada.


A batalha do impressionismo, como a história registra, terminaria com a assimilação da nova escola pela burguesia a partir da década de 1880. Nos anos seguintes, a transformação do impressionismo no marco zero da pintura moderna seria um golpe decisivo na influência da tradição acadêmica que reinara absoluta ao longo de todo o século XIX.


O advento das vanguardas artísticas ao longo das primeiras décadas do novo século se encarregaria de jogar uma pá de cal sobre a influência destes acadêmicos, que se reduzem, literalmente, a peças de museu, totalmente mortos como influência viva para a pintura subseqüente.


Por volta da década de 1920, quando a burguesia mundialmente começa a assimilar a pintura modernista o nome de Bouguereau e outros de seus contemporâneos desaparece até mesmo das enciclopédias de arte. Foi a completa derrocada daquela tradição.


O pintor foi “redescoberto” novamente apenas na década de 1970, quando, encerrado o período mais importante de desenvolvimento das vanguardas, muitos críticos começaram a reavaliar a herança e a importância do academicismo. Hoje a arte de Bouguereau permanece um anacronismo, servindo mais como o registro do apogeu de uma tradição que foi totalmente destruída pelas novas teorias da arte.



O jovem Baco.




O primeiro luto.


O arrependimento de Orestes.

Pietá.
Alma sendo levada para o céu
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terça-feira, 29 de novembro de 2011

A 29 de novembro de 1924, morria Giacomo Puccini

O compositor, herdeiro da tradição nacionalista de Verdi, foi o principal nome das óperas italianas no período de consolidação do Estado italiano, acompanhando também o movimento das vanguardas de sua época

Giacomo Puccini, um dos maiores nomes do mundo da ópera, teve sua obra determinada por um dos períodos mais importantes da história italiana, período que produziu algumas das maiores conquistas culturais da história recente do país.


Puccini nasceu em uma família de antiga tradição musical. Desde o século XVIII que o cargo de organista titular na igreja de São Martinho em Lucca era passado de pai para filho. Michele Puccini, pai de Giacomo, ocupava este posto, e o jovem músico já estava destinado assim, desde a infância, a substituí-lo em sua posição. Nos primeiros anos de sua formação, porém, Giacomo pareceu aos professores um estudante medíocre, sem concentração e dedicação aos estudos musicais. Foi apenas quando, em certa ocasião, o rapaz assistiu Aida, a grande ópera de Verdi, que, maravilhado, apaixonou-se pela música, e pelas óperas em particular. O garoto tinha então 21 anos, e foi neste mesmo ano que ele compôs sua primeira ópera, Messa. Trabalho que colocava um ponto final na antiga tradição familiar de músicos de igreja. A partir de então Puccini encaminha-se cada vez mais determinado para o trabalho operístico.


Em 1882, por ocasião de um concurso, ele compõe uma ópera em um ato, Le Villi, que apesar de não ter vencido a competição, se tornaria sua primeira ópera ser encenada nos palcos italianos, dois anos mais tarde.


Graças a ela, ele recebeu uma nova encomenda, compondo a ópera Edgar, que estreou importante Teatro Scala, em Milão em 1889. Ambos os trabalhos hoje constituem um parte obscura da produção de Puccini, raramente encenadas.


Sua primeira obra de importância foi sua terceira composição, Manon Lescaut, que foi levada aos palcos pela primeira vez em 1893. Nesta peça pode-se ver mais claramente a importância e o caráter das óperas de Puccini. A história sobre a qual Puccini resolveu basear-se para este trabalho havia já sido usada poucos anos antes pelo francês Jules Massenet. Apesar disso o italiano estava convencido que a Manon de Massenet era essencialmente francesa, e que ao dar a ela as colorações mais típicas do temperamento italiano, dramático e passional, o trabalho iria adquirir uma identidade totalmente distinta que justificaria a repetição.


Nestas intenções fica muito nítida influência do movimento nacionalista italiano na concepção dos trabalhos de Puccini, e daí depreende-se também a importância do compositor.


Uma influência muito nítida em seu trabalho foram as óperas de Verdi, que foi o compositor por excelência do nacionalismo italiano. A música de Verdi foi um dos produtos culturais mais importantes do período do Risorgimento italiano, o período que compreende todo o desenvolvimento da revolução burguesa na Itália até a unificação, em 1870. Puccini pertence ao período seguinte destas lutas, a etapa em que, a burguesia italiana, já detentora de seu Estado nacional, impulsiona um período vigoroso de modernização e industrialização do país. Este movimento, que coincide com a consolidação do imperialismo europeu, se estenderia até a Primeira Guerra, quando estes grandes monopólios internacionais entram pela primeira vez em um conflito de morte em busca do controle dos mercados e fontes de matérias primas existentes no mundo.

As óperas de Puccini, deste modo, procuram ainda definir o caráter próprio desta recém unificada nação italiana.


Manon Lescaut foi a ópera que consagrou Puccini como um dos grandes nomes da ópera em seu país, abrindo caminho para seus trabalhos seguintes. Em 1896 é encenada pela primeira vez uma das maiores realizações do compositor, La Bohème, que apresenta estes mesmos elementos. Esta ópera apresentava uma novidade em relação à tradição mais típica das óperas. Ao invés de ter como centro personagens saídas da aristocracia e da alta burguesia, Puccini inova, e apresenta como heróis, alguns representantes daquele movimento artístico italiano, que, até conseguirem impor sua obra ao país, viviam na completa miséria e obscuridade. O grupo principal de personagens inclui o poeta Rodolfo, o pintor Marcello, o filósofo Colline e o músico Schaunard, que dividem um pobre apartamento. A trama principal é uma história trágica de amor à maneira romântica, narrando a paixão e as desventuras de Marcello e Mimi, uma pobre vendedora de flores tuberculosa. La Bohème expressava a crescente importância que passava a ter o movimento artístico europeu, que fervilhava naqueles anos e estava prestes a ingressar no período mais importante de sua existência a partir do novo século.


Seu trabalho seguinte é um dos maiores clássicos de Puccini, Tosca, que abordava mais diretamente o problema do nacionalismo italiano e sua relação com o movimento artístico do Risorgimento. Seu herói era Mário Cavaradossi, um pintor revolucionário, entusiasta de Napoleão e adepto das idéias iluministas, apaixonado pela cantora de óperas Floria Tosca. Na obra ele é preso por acobertar outro revolucionário, Cesare Angelotti, e cabe a Tosca conseguir libertá-lo.

A estréia de Tosca deu-se em 1900 e reflete a atmosfera de intensas lutas políticas que se desenvolviam no período, quando o movimento socialista achava-se todo mobilizado pela deposição da monarquia italiana. O rei Umberto I seria assassinado apenas seis meses depois da estréia desta ópera.


A estes trabalhos, se seguiram as demais grandes óperas do compositor, sempre tendo como tema central, grandes amores e tragédias, com destaque para Madame Buterfly e Turandot, ambas com influências orientais que eram também uma das marcas do movimento modernista do período. Nestes trabalhos de Puccini posteriores a 1900 ficariam também claras as influências da música moderna sobre ele, em particular de Debussy e Strauss.


Ao final da vida Puccini foi ele mesmo protagonista de uma tragédia típica de suas óperas, em uma suspeita de traição que levou ao suicídio de uma das criadas de sua casa e à prisão de sua esposa.


O movimento nacionalista italiano do pós-guerra, descambou rapidamente para o fascismo de Mussolini. Os fascistas, em suas marchas, naturalmente adotaram uma das composições de Puccini que entoavam nos comícios, a composição nacionalista Hino a Roma. Apesar desta forte ligação de Puccini com o nacionalismo, não há qualquer evidência de uma proximidade maior com o movimento fascista. O compositor viria a falecer já sexagenário em 29 de novembro de 1924.

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75 anos do poeta Oswaldo de Camargo

20 de novembro de 2011

Poeta, contista, novelista, estudioso e teórico da literatura negra, Oswaldo de Camargo é uma das mais importantes personalidades desta tradição literária, escritor considerado um elo entre as gerações de escritores negros das décadas de 1930 e 70



No último mês de outubro, completou 75 anos o grande poeta Oswaldo de Camargo, uma das figuras centrais no desenvolvimento de uma tradição literária negra no Brasil. Sua importância segue em dois sentidos. Primeiro especificamente como autor. Oswaldo é um dos poetas mais representativos desta tradição literária, um dos poucos a cultivar o rigor formal a partir de premissas de influêsncias parnasianas e simbolistas, revelando assim ser ele também um dos poetas da Geração de 45 que buscavam resgatar um maior rigor na forma poética diante do colapso do modernismo de 22. É também um dos mais fortes autores da literatura negra, autor de algumas das maiores obras-primas desta tradição poética.

Oswaldo de Camargo é não só um autor importante pelo que escreveu, mas pela posição privilegiada que ocupa entre as diferentes gerações de escritores negros. Pertencente à geração de autores negros da década de 1950, ele, junto à Associação Cultural do Negro, conheceu e travou relações com intelectuais de grande importância do movimento negro. Oswaldo, entre outros autores, conheceu pessoalmente Solano Trindade, o grande “poeta do povo”, militante comunista e agitador cultural por toda a vida. Deste modo, profundo conhecedor da tradição da imprensa negra, da atividade das associações culturais, das figuras mais importantes da intelectualidade negra das décadas de 1930 e 50, ele viria a ocupar um lugar importante entre os jovens escritores negros da década de 1970, geração que representou uma etapa de culminação daquela longa tradição. Ele foi o elo entre estas duas etapas de evolução da literatura negra. Entre os escritores da geração de 70, Oswaldo irá ocupar uma posição chave, como fundador do primeiro e importantíssimo grupo organizado da literatura negra brasileira, o Quilombhoje, formado com fins á defesa e divulgação da literatura negra.


Sua importância até aí já seria considerável, mas a estas contribuições se acrescenta uma igualmente importante, como estudioso, pesquisador e teórico da literatura negra. Oswaldo de Camargo foi autor de uma obra pioneira de extraordinária importância para o negro brasileiro: O Negro Escrito, o primeiro trabalho abrangente de pesquisa sistematizando e agrupando as diversas manifestações da presença do negro na literatura brasileira até o momento em que o negro surge como um agente ativo desta literatura e passa a desenvolver uma tradição própria nas letras nacionais. Este livro é ainda hoje uma obra essencial para o estudo e o entendimento do que vem a ser a literatura negra e quem são seus autores.


É deste modo, com imenso prazer que Causa Operária dedica esta edição do Caderno de Cultura a uma pequena homenagem a Oswaldo de Camargo, esta grande personalidade do movimento negro que completou este ano 75 anos de vida.


A descoberta do racismo


Nascido em 1936, em Bragança Paulista, interior de São Paulo, o poeta Oswaldo de Camargo estudou dos 13 aos 17 anos no Seminário Nossa Senhora da Paz, de onde ele saiu em 1954, aos 18 anos.


Ele tornou-se órfão antes dos seis anos, e por isso, criado desde cedo em instituições católicas. Segundo conta o próprio Oswaldo, a consciência de sua cor, bem como a percepção de que existia um sistema informal de segregação racial no Brasil, surgiu a ele ainda aos 12 anos. O futuro poeta nesta idade sentia uma forte vocação religiosa e mostrou interesse em tornar-se sacerdote da Igreja.


Os padres holandeses da instituição em que estudava começaram na ocasião a procurar um seminário em que ele pudesse ingressar. Para o espanto destes estrangeiros, não havia nenhum seminário em toda a região que recebesse negros. O jovem tinha, portanto 12 anos quando percebeu que devido a sua cor, muitas das portas da sociedade, para ele estariam fechadas. Era uma questão que parecia se colocar acima de todos os valores espirituais que ele havia aprendido desde cedo, uma questão que imediatamente desencadeou uma crise espiritual, de identidade, de contradição com o mundo que, segundo ele mesmo reconheceria, estaria na base de seu interesse futuro pela literatura. Ao se defrontar com esta questão, ele passaria a cultivar um sentimento comum a todos os negros da Diáspora, em todos os países onde o negro existia como uma minoria ou como uma população oprimida em um país controlado por uma burguesia branca. Foi este o início de sua identificação futura com a literatura negra.


Após muitos meses de procura, os padres descobriram finalmente um lugar para o pequeno negro, um seminário tinha à frente também padres holandeses. Era o Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto.


Nos anos que se seguiram, naquele ambiente de reclusão e austeridade, Oswaldo teve grande oportunidade de desenvolver sua propensão para as artes e em particular, para a literatura. Aos 16 anos, nas missas realizadas na catedral de Rio Preto, ele descobriu a música e começou a se dedicar ao órgão desde então. Aos 17, ele era já o principal organista da catedral, chegando a realizar algumas composições e letras próprias. Ele se destaca também rapidamente nas letras, sendo também escalado para ler discursos e fazer homenagens nas solenidades realizadas tanto no seminário quanto na catedral. Ele escreveu seus primeiros poemas aos 16 anos também, graças ao estímulo de um dos estudantes, um rapaz erudito que escrevia poesias em latim e grego. Sua primeira influência e fonte de inspiração eram os poetas ultrarromânticos como Fagundes Varela e Casimiro de Abreu, a partir dos quais escrevia versos de inspiração religiosa, cantando Deus, a natureza, os pássaros. Ele aprendeu aí a adorar a literatura, a sentir prazer pelas ideias elevadas expressas em versos, e desenvolveu desde então “o deslumbramento pela literatura, deslumbramento diante da literatura”, segundo suas palavras.


As associações culturais do movimento negro


Uma experiência cultural importante também foi participar da organização de um teatro no seminário. Foram atividades como estas que alimentavam já sua vontade de dedicar sua vida às artes.


Até aí, ele se encaminhava para seguir carreira como seminarista, mas aos 17 anos esta situação muda. Novamente ele se defronta com o problema racial. Quando ele descobre que o Seminário Maior do Ipiranga não aceitaria ali seu ingresso pelo fato de ser ele um negro, Oswaldo de Camargo finalmente abandona sua ideia de tornar-se padre. Tomado por uma grande crise pessoal, ele sai do Seminário Menor e muda-se para a capital paulista, onde mantém-se ainda próximo a organizações católicas, e torna-se organista na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. É nesse momento que começaria sua atividade jornalística e sua militância no movimento negro.


Através de um anúncio no jornal ele descobre a Associação Cultural do Negro, que passa a freqüentar. Ali ele conhece e trava relações com alguns dos mais importantes membros do movimento negro brasileiro, alguns membros da Frente Negra, e, entre outros, o escritor Sérgio Milliet, que havia sido amigo pessoal de Solano Trindade e o também escritor Afonso Schmidt. O próprio Oswaldo de Camargo relembra estes anos: “A partir deste momento começo a ficar a par de que há uma história de lutas que começaram no início do século com a imprensa negra”.

Nestes anos o poeta começa a escrever mais intensivamente poemas que eram, em sua maioria, voltados à leitura de seu próprio círculo de amizades. Não eram tanto poemas pessoais, mas eram fundamentalmente escritos políticos, de ocasião, escritos para atividades, eventos, e voltados a divulgar de uma forma mais ampla o problema do negro dentro da Associação Cultural do Negro. A partir de 1955 ele passa a trabalhar também como revisor no jornal O Estado de S. Paulo, que lhe forneceria também uma importante experiência jornalística.

Um Homem Tenta Ser Anjo

É quando Oswaldo de Camargo trabalhava como diretor de cultura na Associação Cultural do Negro que ele publica, em 1959, seu livro de estréia, a coletânea poética Um Homem Tenta Ser Anjo. Esta obra trazia poemas com influências diversas de Fernando Pessoa, Sá Carneiro, Manuel Bandeira, Hilda Hilst, Rainer Maria Rilke. Uma obra de importância pois era ele então praticamente o único negro de sua geração a cultivar uma expressão moderna, enquanto que outros autores negros ainda não conseguiam se desvencilhar da influência do romantismo. Um Homem Tenta Ser Anjo é uma obra que apresenta bem o conjunto de influências que haviam sido assimiladas pelo poeta, com uma ênfase no rigor formal dos versos. Nota-se aí a influência do parnasianismo e do simbolismo. Um dos poemas importantes presentes nesta obra é Auto-retrato:


“Ver-me assim é ver num campo aberto
Um cimo verde, um horizonte azul,
E uma alma em meu vergel interno,
A qual eu pastoreio e alimento.
Gosto de olhar a minha revolta alma
Aqui deste rochedo em que me assento...
Tenho um riacho também que me tortura,
Bucólico e terno...
Às vezes, ao voltar do meu rochedo,
Após um dia todo de labor,
Lavo o rosto em sua água e torno-me
Amável e sonhador...
A alma que alimento e pastoreio
Passeia em minha face juvenil
Nos dias de excursão, paisagens outras,
Cansada deste pífaro que toco
Aqui neste rochedo em que me assento...”

Seu segundo livro é publicado em 1961, 15 Poemas Negros. Nesta obra, ele pela primeira vez adentra uma referência mais explícita ao negro. O poema mais marcante desta coleção, muito festejado na época de seu lançamento, foi a poesia confessional Fragmentos em Prosa, poema inspirado por Hilda Hilst, pela impressão que o poeta teve ao conhecer pessoalmente a escritora. Oswaldo de Camargo ficou tão deslumbrado por ela que escreveu este texto, uma reflexão sobre a distância entre os mundos do negro e do branco.

Curiosamente, nas mais de vinte páginas que Florestan Fernandes escreveu como prefácio desta obra, ele não cita este poema extraordinário. O mistério desta omissão é que este poema só foi incluído nesta coletânea quando o livro já estava na gráfica, impresso em linotipo. Prestes a rodar o material, o dono da gráfica comentou que, pelo que o poeta já havia gastado, ele tinha direito a 10 páginas adicionais no livro, e perguntou se o poeta não gostaria de inserir outros textos ali. E ele acrescentou este Fragmentos em Prosa, um poema de sete páginas. Outros poemas presentes no livro merecem também destaque, uma delas é Meu Grito:


“Meu grito é estertor de um rio convulso...
Do Nilo, ah, do Nilo é o meu grito...
E o que me dói é fruto das raízes,
ai, cruas cicatrizes!,
das buscas florestas da terra africana!

Meu grito é um espasmo que me esmaga,
há um punhal vibrando em mim, rasgando
meu pobre coração que hesita
entre erguer ou calar a voz aflita:
Ó África! Ó África!

Meu grito é sem cor, é um grito seco,
é verdadeiro e triste...
Meu deus, porque é que existo sem mensagem,
a não ser essa voz que me constrange,
sem ecos, sem lineios, desabrida?
Senhor! Jesus! Cristo!
Porque é que grito?”

A angústia e a revolta do negro na literatura


Uma das notas mais marcantes da obra de Oswaldo de Camargo tanto em prosa quanto em verso, é seu forte sentimento de dilaceramento interior, e que fica claro no poema acima, uma crise profunda que reflete uma contradição comum a todos os negros da Diáspora, mas que nem sempre é expresso da forma clara como o fez este poeta. Sua crise é produto do choque de consciência da situação de proscrição social do negro. Um homem criado entre uma sociedade dominada por uma burguesia branca, da qual assimilou os valores e a cultura, da qual, finalmente, é parte integrante, orgânica, mas que é ao mesmo tempo, a todo momento, colocado à margem dela, tem esta sua condição de “cidadão” colocada em xeque, e que se vê, na prática, entre dois mundos.

A evolução de sua poesia mostra um caminho comum a muitos dos escritores negros, avançando da angústia para a revolta, para uma situação de cada vez maior radicalismo. Este tom mais radical marcaria alguns dos melhores poemas de Oswaldo de Camargo na década de 1970, um produto da radicalização do movimento negro como um todo. O poema Atitude marca bem este sentimento:

“Eu tenho a alma e o peito descobertos
à sorte de ser homem, homem negro,
primeiro imitador da noite e seus mistérios
Triste entre os mais tristes, útil
como um animal de rosto manso.
Muita agonia bóia nos meus olhos,
inspiro poesia ao vate branco:
“... Stamos em pleno mar...”
Estamos em plena angústia!

(...)
Anoitecidos já dentro,
tentamos criar um riso,
não riso para o senhor,
não riso para a senhora,
mas negro riso que suje
a rósea boca da aurora
e espalhe-se pelo mundo
sem arremedo ou moldagem,
e force os lábios tão finos
da senhorita Igualdade!

Estamos com a cara preta
rasgando a treva e a paisagem
minada de precipícios
velhos, jamais arredados!

Enforcaram-nos irmãos,
com laços de mil enganos!”
...

O poeta em prosa


Em 1972 ele publica seu primeiro livro em prosa, O Carro do Êxito. Para Oswaldo de Camargo escrever este texto em prosa é uma novidade absoluta. Não só para ele, poeta, mas para a literatura negra brasileira de um modo geral, que era até então – e é também em grande medida ainda hoje – uma tradição que se expressa fundamentalmente em versos.


É uma característica comum à literaturas em fase de formação, pelo simples fato da expressão poética exigir – em geral – menor elaboração do que uma idéia em prosa, que requer maior planejamento, concentração, esforço. Este traço é comum à literatura negra em praticamente todos os países em que ela se manifestou, tendo conseguido consolidar perfeitamente uma tradição em prosa, com grandes autores e grandes obras, somente nos Estados Unidos. Nos demais países, apesar de haverem inegavelmente obras em prosa essenciais, a poesia é ainda a expressão primordial desta literatura.


Deste modo, é de grande importância o surgimento deste trabalho de Oswaldo de Camargo, uma expressão de maturidade desta literatura negra. Formado por um conjunto de contos, o tema tratado em O Carro do Êxito era também igualmente novo, a luta de um negro, recém chegado à cidade grande, buscando conseguir ingressar nesta sociedade controlada por brancos, apresentando todas as conseqüências desta luta, seus sonhos destruídos, sua angústia, desilusão e isolamento. É essencialmente uma crônica da vida do negro, não nas longínquas cidades despovoadas no interior do país, mas defrontando-se com o preconceito e a marginalização exatamente no coração da sociedade que o oprime. A grande cidade que inspirou o ambiente cosmopolita foi justamente São Paulo, onde Oswaldo de Camargo viveu de fato muitas destas experiências.


Diante do livro, o leitor é inserido diretamente no interior do movimento negro paulistano das décadas de 1950, 60, nos ambientes de acaloradas discussões, nas redações dos jornais da imprensa negra, lado a lado com os solitários adolescentes negros ansiosos por encontrar seu lugar ao sol em um mundo onde estão permanentemente deslocados. Daí que surge com grande força também a importância dos grupos negros que se formavam justamente como forma de combater este fato.


O livro começa com o conto Oboé, em meio a uma reunião típica da imprensa negra, onde negros exaltados levantam-se citando Castro Alves, a abolição, a necessidade de uma segunda abolição. O livro é muito rico na descrição destas atividades tão típicas do movimento negro. Outros contos ainda presentes no livro, histórias como a amargura de um jovem músico negro que, convidado a viver na casa de seu maestro, descobre ainda vestígios de racismo em sua maneira de tratá-lo. Há ainda o comovente episódio em que outro negro, jovem amante de literatura, vai fazer uma entrega em um bairro nobre e tem uma conversa com uma garota branca que o recepciona. Todas as histórias trazem ao centro personagens jovens, e trata justamente das expectativas da juventude negra em descobrir seu lugar, um meio em que possa atuar livremente.


O Quilombhoje


O ano de 1978 é um ano da maior importância na vida de Oswaldo de Camargo, da literatura negra brasileira e do movimento negro de um modo geral. A ditadura estava em plena crise, assediada pelas mobilizações estudantis e operárias. Certa noite, reunidos no bar Mutamba, próximo à antiga sede do Estadão, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Luiz Silva [o Cuti], Abelardo Rodrigues e Lescano, em meio a uma acalorada discussão, decidem formar um grupo literário, um grupo que defendesse e divulgasse abertamente a literatura negra. Nasceria aí o grupo Quilombhoje (nome nascido da fusão das palavras Quilombo + hoje, a ligação entre o passado, o presente e a luta do negro). Ele era o produto da militância política, literária e jornalística destes escritores. Foi o primeiro e mais importante grupo literário negro do Brasil, pois até então a literatura negra havia se desenvolvido através de figuras isoladas, e nunca em torno de um grupo que tivesse a defesa da literatura negra como eixo de atuação. O Quilombhoje pretendia destacar justamente o caráter de resistência da literatura negra, e de isolamento do negro nos dias de hoje, morador de um quilombo moderno.


Em 1978, surge também A Descoberta do Frio, uma obra de literatura fantástica. Ele tratava de uma forma simbólica do problema da proscrição social do negro, de sua invisibilidade em um sociedade racista. Sua personagem sofre de uma doença misteriosa, que apesar de grave, é pouco notada pelas pessoas ao seu arredor, que atribuem sua doença a uma gripe, uma malária. A situação em que ele se encontra tem duas conotações, o racismo e a indiferença. Ele é vítima de ambas, e este é o seu mal. É uma questão que pode dizer respeito tanto ao branco quanto ao negro. Uma indiferença que pode se manifestar tanto no branco quanto no negro anestesiado, dominado pelo branco.


No mesmo ano, é lançado também o livro de poemas O Estranho. Publicado quase duas décadas desde 15 Poemas Negros, esta obra revelava a transformação da poesia de Oswaldo de Camargo neste período. Ele levava mais longe o problema do rigor da forma poética, com escritos que mostravam mais claramente a identificação de Oswaldo de Camargo com a Geração de 45, com diversas premissas comuns às daqueles poetas.


O Negro Escrito


Um dos mais importantes estudos sobre a literatura negra no Brasil surge em 1987, a obra pioneira O Negro Escrito – Apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira, ainda hoje um estudo sem igual e de extraordinária importância para o movimento negro e para a cultura brasileira em geral. O livro era produto tanto dos interesse pessoal de Oswaldo de Camargo pela literatura negra, quanto de sua natural inclinação à atividade jornalística, de pesquisa, estudo e sistematização das diversas etapas e manifestações da literatura negra nacional. Ao longo de seus anos como jornalista, ele já havia escrito já dezenas de artigos, e a elaboração de um trabalho como este era um desenvolvimento natural de sua atividade. A isso se acrescia a grande importância para ele e outros negros de suas relações, de haver uma sistematização abrangente de todas as manifestações do negro na literatura.


O livro acompanhava assim justamente toda a trajetória do negro desde sua chegada ao Brasil, passando pelo modernismo e as gerações seguintes, de 1930, 50, 70, 80, em uma obra cuja proposta, como indicava o título, era apresentar apenas alguns apontamentos iniciais, um estudo introdutório ao problema da literatura escrita a partir de um “eu” negro no Brasil. Em Negro Escrito, Oswaldo de Camargo não se preocupava em desenvolver uma análise aprofundada dos autores negros, mas sinalizar alguns caminhos por onde se dirigira a literatura negra e que serviria como uma bússola para o leitor se localizar no interior desta rica, porém ainda muito pouco conhecida tradição literária.


Encerrada a parte analítica da obra, há uma breve mas fundamental antologia com textos que destacam presença do homem negro no País, em textos de grandes escritores brancos e negros, avançando desde as manifestações mais embrionárias desta tendência literária, até os mais lúcidos e radicais poetas negros da geração de 1970.


Foi por ter se colocado como esta bússola que Negro Escrito possui ainda hoje uma importância extraordinária não apenas para a literatura negra brasileira, mas para a literatura negra em geral. Apontamentos que traçam o desenvolvimento da consciência do negro no maior país da América Latina e uma das maiores nações negras do mundo. Negro Escrito era ao mesmo tempo uma história literária e uma história do negro brasileiro. Por ser capaz de relacionar e trazer à tona estas questões, por ter mostrado o elo indissolúvel que ligava as poesias de Castro Alves, Luis Gama, Cruz e Souza, Lino Guedes, Solano Trindade, até os poetas mais jovens – e de todos estes inseridos em um movimento negro internacional –, em uma única tradição, coerente, combativa, é que este livro de Oswaldo de Camargo foi um marco no processo de amadurecimento da consciência do movimento negro brasileiro. Ele tornou mais claro, para centenas, milhares, de escritores, o sentido e a importância desta tradição literária especificamente negra.


Um guardião da literatura negra moderna


O impacto desta publicação entre as associações e organizações do movimento negro foi enorme. Pela primeira vez aparecia no meio negro um livro escrito por um negro tratando da literatura que o negro escrevia. Este fato, de ter sido um negro, membro atuante do movimento, o autor foi também de grande importância, pois, deste modo, Negro Escrito foi capaz de apresentar autores totalmente desconhecidos do meio branco, e cujas qualidades e importância para o negro – pelos problemas específicos que expressavam em seus textos – só poderiam ser percebidos por um negro. A parte do livro, por exemplo, dedicada aos autores do Embu, possui esta característica. São escritores menores de um ponto de vista estritamente estético, mas de grande valor para a coletividade negra pelos sentimentos e problemas abordados.


Nos anos seguintes, Oswaldo de Camargo foi se consolidando cada vez mais como uma das grandes autoridades em literatura negra no Brasil, realizando palestras e trabalhando em incontáveis estudos e artigos. Hoje ele é o mais respeitado especialista no assunto.

Por seus inúmeros textos e estudos sobre o poeta Cruz e Souza, em 1998 Oswaldo de Camargo ganhou o troféu Cruz e Souza da Secretaria de Cultura de Santa Catarina, estado natal do poeta simbolista.

Um estudo recente de Oswaldo de Camargo foi lançada em 2009, a transcrição de uma palestra sobre o poeta Solano Trindade. A obra, Solano Trindade – Poeta do Povo, é também um estudo essencial no entendimento da importância da obra de Trindade no desenvolvimento da consciência do negro brasileiro.


Oswaldo de Camargo tem poemas e contos traduzidos para diversos idiomas em outros países, em inglês, espanhol, francês e alemão.


Hoje o poeta trabalha como coordenador de literatura no Museu Afro Brasil, em São Paulo. Ele também trabalha ainda ativamente em prol da divulgação desta rica tradição da literatura nacional, organizando obras de autores ou intelectuais menos conhecidos, divulgando nomes de figuras negras expressivas da vida cultural nacional e participando regularmente de palestras e debates sobre a literatura negra e seus autores mais representativos. Neste mês de novembro, mês atribuído à morte do grande líder quilombola, Zumbi dos Palmares, quando o poeta completa seus 75 anos, está saindo a segunda edição de sua novela A Descoberta do Frio.







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Auguste Rodin e o início da escultura moderna

O Beijo.
12 de novembro de 2011

Hoje se completa o aniversário do escultor cujas inovações foram a pedra de toque das inovações modernistas na escultura

Hoje se completa o aniversário de nascimento do escultor francês Auguste Rodin, nascido a 12 de novembro de 1840. Ele foi o principal representante do movimento de renovação da escultura no século XIX. Sua obra seguiu caminhos paralelos aos da pintura impressionista, sua contemporânea, e foi a partir das criações de Rodin que iniciou-se verdadeiramente a tradição moderna na escultura. Estas inovações só foram possíveis a partir das teorias desenvolvidas pelo impressionismo e sua nova maneira de encarar o papel da luz nas obras de arte.

A contribuição de Rodin inovou a técnica escultórica em diferentes sentidos. Primeiro incorporando em suas criações exatamente os princípios da pintura impressionista, deixando suas obras sempre com um aspecto inacabado, esboçado, o que representava uma ruptura com as técnicas “realistas” consagradas na escultura e abrindo caminhos para técnicas mais propriamente modernistas, como o expressionismo. Em segundo lugar houve a intenção clara de representar os momentos e gestos fugazes de seus modelos – o que era por si só uma extensão dos próprios temas impressionistas de retratar a vida cotidiana em seus pequenos gestos e momentos transitórios. Era uma inovação significativa em comparação com os temas históricos, mitológicos ou alegóricos do neoclassicismo e do romantismo que dominavam totalmente as técnicas escultóricas.

Cabeça de Balzac.

Por fim, e esta talvez tenha sido a mais importante contribuição de Rodin, ele introduziu pela primeira vez na escultura a percepção da luz nas obras – ideia extraída também das descobertas impressionistas -, passando a modelar suas esculturas em função da luz a qual ela seria exposta. Foi uma inovação extraordinária, pois pela primeira vez, um escultor se preocupava – e esta preocupação se refletia em uma técnica - não com o aspecto geral da obra em si mesma, mas com ela em relação direta com o  tipo de luz do ambiente em que ela estaria exposta.

Suas esculturas, deste modo, incorporavam as variações da luz em sua maneira de se apresentar, variando seu aspecto geral de acordo com ela, com o movimento da luz e da sombra sobre sua superfície ao longo de um dia.

O principal motor da técnica de Rodin era de inspiração realista, da mesma forma que o impressionismo foi um desenvolvimento do realismo. O conteúdo de suas obras, porém, teve grande influência do simbolismo francês. Sua preocupação, portanto, não era o simples retrato naturalista de suas figuras, mas o de apresentar uma imagem quase ideal de seus temas, procurando, através do tipo de técnica que empregava, trazer à superfície, o conteúdo subjetivo das peças a partir de seu modelado. Desta maneira, em trabalhos como O Beijo, ou O Pensador, duas de suas obras primas, o escultor buscou encontrar a forma ideal destes conceitos. No primeiro caso, é ressaltado o sentido de entrega, afeto e envolvimento emocional do casal no ato do beijo, tanto na delicadeza da pose da figura masculina, quanto na completa entrega passional expressa pela pose da figura feminina. Já em O Pensador, o escultor procurou expressar o ato da reflexão em todo o conjunto da pose de seu modelo. Todo o seu corpo foi tensionado para expressar a profundidade das reflexões que ele deveria indicar, desde a rigidez de sua testa, a contração de seus lábios, as narinas dilatadas, a curvatura de suas costas, o braço que apoia seu queixo e a contração de todos os músculos de seu corpo de um modo geral.

O Pensador.

Outra obra de grande valor onde se vê claramente aplicados estes princípios é a escultura Nijinski, espécie de representação simbólica do grande bailarino russo. Nesta peça, os traços e a fisionomia de Nijinski aparecem totalmente estilizadas, a ponto de torná-lo irreconhecível. A beleza e grandeza do dançarino apresentam-se, ao contrário, em sua pose, que expressa, como um todo, a tensão física e o movimento característicos do balé modernista que ele interpretava.

Auguste Rodin introduziu, com estas noções, um novo mundo de possibilidades expressivas na escultura, revolucionando esta arte e indicando o caminho que seria trilhado pelas jovens gerações da vanguarda artística do século XX.
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Modernismo é tema de exposição no MAC

8 de novembro de 2011
O museu apresenta uma reunião de 150 obras dos trabalhos mais significativos de artistas da primeira geração modernista em relação com expoentes do modernismo europeu do mesmo período

Estreou no último mês no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, uma mostra panorâmica do modernismo brasileiro, destacando suas relações com a arte moderna europeia. A partir da comparação entre estas duas tradições, vê-se muito claramente as ideias e técnicas que constituíram a gênese deste movimento de renovação das artes nacionais.

Entre os brasileiros, estão os principais nomes de diferentes gerações. Dos artistas de 22, há Anitta Malfatti, Lasar Segall, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Victor Brecheret e  Antônio Gomide. Ao lado deles, em contraste com suas obras, há os trabalhos de modernistas europeus, como  Henry Matisse,  Wassily Kandinsky,  Pablo Picasso e Fernand Léger.

A obra de Picasso e Matisse foram pedras de toque no desenvolvimento das técnicas modernistas no Brasil, a simplificação e geometrização das formas derivam principalmente das contribuições destes dois artistas pioneiros, praticamente todos os nossos modernistas assimilaram estas ideias. Já Kandinsky é um exemplo do expressionismo europeu, uma tendência também recorrente na arte nacional do período, que marcou principalmente as obras de Malfatti e Segall, mas que apresenta uma relação mais direta com o gaúcho Iberê Camargo, ou mesmo com Tomie Ohtake, nomes de destaque entre as tendências expressionistas nas artes brasileiras. Um caso muito interessante é a grande influência que o cubismo de Léger teve sobre Tarsila do Amaral, suas cores vivas e formas circulares foram assimiladas de uma forma muito particular pela pintora, que colocou tais técnicas também a serviço de um novo conteúdo, diretamente ligado à realidade nacional.

Um pouco mais jovens são os artistas Flávio de Carvalho e Ismael Nery, que, iniciando suas atividades no final da década de 1920, apresentaram uma influência muito mais forte do surrealismo em suas obras. O mesmo acontece também com Maria Martins, uma geração mais jovem. Ao lado de suas obras, estão os trabalhos dos expoentes da chamada “pintura metafísica”, os italianos Giorgio De Chirico e Giorgio Morandi, uma corrente menor da arte da época mas que teve bastante comunicação com as ideias surrealistas, tomadas mais tarde como precursoras de seu programa. Mais propriamente surrealista, e muito admirado por Maria Martins e Oswaldo Goeldi, são as gravuras do austríaco Alfred Kubin. Vê-se ainda a influência do russo Marc Chagall em determinadas obras de Neri. Flávio de Carvalho, que desenvolveu também uma tendência expressionista em seus trabalhos, está presente série Minha Mãe Morrendo, trabalho de grande dramaticidade, presente ao lado da tela de Karel Apel, Cabeça Trágica.

Dos artistas do pós-guerra, estão os trabalhos abstratos de Lygia Clark e Waldemar Cordeiro, cujas tendências geométricas tem um paralelo direto com trabalhos de artistas mais velhos, como o norte-americano Alexander Calder ou o suíço Max Bill, que serviram de modelo para os artistas do concretismo e do neoconcretismo.

Além da comparação muito interessante entre as diferentes correntes modernas das artes internacionais com o nosso modernismo, um dos pontos fortes da mostra é apresentar não apenas os expoentes destas tradições, mas também nomes obscuros de artistas estrangeiros que, apesar disso, tiveram importante influência no Brasil.

A exposição, localizada no prédio provisório do MAM, no Parque do Ibirapuera, permanecerá aberta a visitação até o fim de janeiro de 2012.

Divulgação:

Modernismos no Brasil
MAC – Museu de Arte Contemporânea.
Parque do Ibirapuera - Av. Pedro Álvares Cabral, s/n.
De terça a domingo, das 10h às 18h.
Até 29 de janeiro de 2012.
Entrada Franca.
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Ike Turner, o rock e o movimento negro norte-americano

5 de novembro de 2011

Se estivesse vivo, o músico negro Ike Turner estaria completando hoje 80 anos. Ele foi um dos pioneiros do rock e um dos expoentes da música soul em seu país


Álbum da fase rock'n'roll de Ike Turner.
Ike Turner foi um dos pioneiros do rock’n’roll. Da mesma forma que outros negros que ajudaram a formar a identidade musical do rock, como Bo Diddley ou Fats Domino, a importância de sua contribuição acabou encoberta pela popularidade que os músicos brancos passaram a adquirir no período de expansão do movimento. Um fenômeno que se deu diretamente como produto da opressão do negro nos EUA, a partir da manipulação das figuras do movimento pela burguesia da indústria fonográfica e de seus funcionários, tanto nos jornais quanto na televisão e no rádio, nas gravadoras, nas lojas e entre a crítica especializada. Uma grande máquina que habilmente colocou para o segundo plano os expoentes negros do mais popular movimento musical daquele país se segregado.

Ike Turner nasceu no Mississipi e desde os oito anos já tocava piano e violão. Ele cresceu entre uma comunidade branca ultraconservadora e abertamente racista, que levou a um episódio traumático em sua infância, quando seu pai foi espancado quase até a morte, o que o deixou três anos recluso como inválido, até se recuperar totalmente das seqüelas do espancamento. Uma situação familiar das mais violentas o levou também, muito rapidamente, a buscar na música alguma fonte de satisfação.

Anos mais tarde, na escola, ele formou o grupo com o qual iria permanecer por longo período, o Kings of Rhythm. Foi ao lado deste grupo que Turner gravou um dos singles fundadores do rock’n’roll, a música Rocket 88. Discute-se ainda hoje se não teria sido esta a primeira gravação do rock, competindo com o single Fat Man, de Fats Domino, por exemplo, de 1949.
Uma contribuição significativa de Turner para o rock, foi a introdução da distorção na guitarra, recurso que ele descobriu acidentalmente no estúdio e que foi registrado naquela gravação de Rocket 88.
A dupla Ike e Tina Turner em meados da década de 1960.
Como seria uma constante no rock desta época, não seria Ike Turner a surgir nas rádios tocando aquela musica enérgica e inovadora, mas um branco. Quem o faria seria o músico Bill Halley, outro dos pioneiros do rock, talvez o primeiro branco de talento a aderir à nova música.

Halley se interessa pelo novo ritmo após ouvir justamente as canções do grupo de Ike Turner, e suas primeiras gravações, foram justamente regravações de Rocket 88 e Rock this Joint. Apresentando estes covers de Turner, Halley consegue um sucesso relativo entre o público branco, que o estimula a continuar. Deste modo, no ano seguinte, em 1952, ele grava Crazy Man Crazy, que se torna o primeiro rock a entrar nas paradas de sucesso das rádios de todo país. O rock’n’roll começa neste momento a se transformar em um fenômeno nacional.
Ike e Tina Turner na década de 1970.



Certamente que havia ainda grande espaço para os músicos negros desenvolverem seu trabalho, principalmente entre o público negro, o que efetivamente aconteceu. Tanto Turner, quanto Little Richard, Fats Domino e Chuck Berry tornaram-se músicos extremamente influentes, mas para o público em geral, foram colocados sempre em segundo plano em relação aos brancos, que inclusive elegeram um “rei do rock” branco, Elvis Presley.

Isso aconteceu não pelo simples desejo da burguesia de “esconder” o negro, mas porque o surgimento do rock’n’roll tocava em uma questão política central dos Estados Unidos, que eram as leis de segregação racial. A popularização de um fenômeno cultural tão amplo como aquele, liderado por negros, colocava em xeque toda a política racial do país, abrindo caminho para uma crescente contestação daquelas leis absurdas pela população, em particular os jovens.
Daí que os músicos brancos do rock foram encarados pelos empresários da indústria musical como um remédio necessário para se reverter este processo que parecia irremediável de “mistura” das duas populações.

Finalmente, esta política, mesmo que bem orquestrada, fracassou. O rock era parte de um vigoroso movimento negro que voltava a se radicalizar no país, e que a partir de 1955 abriria uma crise nacional que só seria estancada pela burguesia na década de 1970, após lutas importantes que terminaram com a derrubada de fato, das leis de segregação.

Ike Turner, que começou sua atividade como músico de rhythm & blues, atravessou essa fase como um expoente do rock, e avançou, nas décadas seguintes, para outros gêneros da música negra que foram também parte indissociável do movimento político dos negros norte-americanos, como o soul e o funk, das décadas de 1960-70. O ponto mais alto de sua carreira foram os anos em que tocou ao lado de sua esposa, Tina Turner. As muitas brigas do casal, e inclusive inúmeros episódios de espancamento da mulher, levaram ao fim da união. Ike Turner, ainda manteve uma carreira solo bem sucedida, mas o uso cada vez mais intensivo de cocaína e crack, acabaram com sua música na década de 1980. Foi o vício que levou à sua prisão, em 1991, e à sua morte, por overdose de cocaína, em 2007.

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Luchino Visconti, o narrador da decadência capitalista

3 de novembro de 2011

Nascido em 2 de outubro de 1906, há 105 anos, o cineasta concebeu uma obra fundamental pelas questões sociais e políticas que destaca em seus filmes

Hoje se completa 105 anos do nascimento do italiano Luchino Visconti, um dos mais representativos nomes do cinema. Tendo iniciado sua atividade vinculado ao cinema neo-realista, Visconti desenvolveu-se mais tarde como um dos maiores estetas do cinema de seu país e do mundo de um modo geral. O tema que marcou sua obra de modo quase obsessivo foi também um dos temas mais presentes neste século: a decadência da sociedade burguesa, analisada de diferentes maneiras em seus filmes, que são também algumas das maiores obras primas do cinema mundial.


Este interesse do diretor não é estranho. Visconti era ele mesmo membro de uma tradicional e aristocrática família da burguesia italiana, relacionada com o ambiente artístico nacional. Seu pai dono da maior empresa farmacêutica do país era também um dos financiadores do teatro La Scala de Milão.


Ele viveu assim diretamente o processo de decadência em que vivia a classe dominante italiana, uma burguesia que mal conseguia se sustentar por si mesma, e que em um período de grande crise, foi impelida de entregar seu  governo nas mãos de Benito Mussolini, o arquiteto do fascismo.

Durante o governo Mussolini, Visconti foi um dos críticos da revista Cinema, de Roma, ligada a figuras do governo fascista, e constituiu sua obra a partir de sua ruptura com o regime, quando se aproximou do movimento de massas italiano já no período final da Segunda Guerra, quando se associou à Resistência.


O cineasta foi um dos iniciadores, neste momento, do  cinema neo-realista na Itália, criador de uma das obras precursoras do movimento, Obsessão. O filme acabou censurado pelo governo fascista por retratar o descontentamento, a miséria e a desilusão das classes trabalhadoras no período.


Se no primeiro período de sua obra, marcado por filmes como Obsessão, Terra Treme, e Belíssima o cineasta retratou a luta desesperada dos trabalhadores por melhores condições de vida, terminando invariavelmente derrotados; em seus filmes seguintes, o diretor mantém seu foco ainda nas camadas mais populares da população, na pequena burguesia e a classe operária, mas seus filmes a partir daí tornam-se tecnicamente mais sofisticados. Em Noites Brancas e Rocco e Seus Irmãos a decadência é ainda uma constante. Se no primeiro, adaptação da obra homônima de Dostoievski, seus protagonistas são duas figuras isoladas e amarguradas, deslocadas em seu meio social – tema que seria retomado mais tarde em O Estrangeiro de Camus -; no segundo filme este mesmo problema é transportado para as grandes cidades italianas, onde uma família de camponeses sofre um crescente processo de dispersão em meio às influências corruptoras da vida urbana. O centro da obra é um dos irmãos, o mais frágil deles, que cai na marginalidade depois de se envolver com uma prostituta.

Cena do filme Deuses Malditos, retratando os anos de consolidação do regime nazista na Alemanha.
Enquanto que até aí a decadência da sociedade moderna é mostrada do ponto de vista dos oprimidos, dos desgarrados sociais que sofrem as brutais imposições do capitalismo monopolista; na obra seguinte do diretor, O Leopardo, adaptado do clássico de Giuseppe Tomasi di Lampedusa; estas mesmas questões são tratadas do ponto de vista da burguesia decadente. Em O Leopardo, que se passa em meio ao Resorgimento italiano, na década de 1860, seu protagonista é um aristocrata decadente que se vê confrontado com estes tempos de transformação social ao mesmo tempo em que se sente excluído deste movimento. Ele era o retrato de determinados extratos da burguesia italiana do pós-guerra, após a derrocada do regime fascista.


Em outra obra-prima de Visconti, Os Deuses Malditos, a ação é transportada para a Alemanha nazista, mostrando a maneira como o regime de Adolf Hitler assumiu o controle do país submetendo os próprios industriais alemães. O filme é uma obra prima do cinema político, acompanhando todos os passos o processo de manipulação dos elementos da família até colocar à frente da empresa seu membro mais frágil, diretamente controlado pelos nazistas. Este movimento acompanhava também o próprio processo de consolidação dos nazistas à cabeça do regime político alemão, situação necessária para o imperialismo germânico se lançar à Segunda Guerra.

Este processo de alienação social da burguesia europeia, a sua brutal decadência como classe, é retratada ainda em obras como Luís da Baviera, rei que distancia-se dos assuntos de Estado para viver em função de prazeres sensuais e estéticos; e a obra-prima Morte em Veneza, que acompanha as semanas em que um intelectual decadente passa na cidade italiana, acabando por ficar obcecado pela beleza juvenil de um adolescente hospedado em seu hotel.


Criando estas e outras obras que giram em torno deste tema, sempre recorrente, Visconti destacou um dos aspectos mais permanentes na atual etapa histórica do capitalismo, que é o período de decadência de sua dominação. Crise revelada nas obras de Visconti tanto do ponto de vista do modo de vida desta burguesia, quanto de seus valores, de suas instituições, da maneira como conduz seus negócios e os reflexos desta crise nos demais extratos da sociedade, na pequena burguesia e nos trabalhadores. Como grande narrador da crise da sociedade moderna, Luchino Visconti foi dos maiores realizadores do cinema.

Ivan Turguêniev e a geração dos niilistas russos

29 de outubro de 2011

Em 1862, Ivan Turguêniev via-se no centro de uma das mais acaloradas polêmicas que já haviam agitado o universo da intelligentsia russa. No centro dos debates, estava a publicação recente de sua quarta novela, Pais e Filhos


Em 1862, Ivan Turguêniev via-se no centro de uma das mais acaloradas polêmicas que já haviam agitado o universo da intelligentsia russa. No centro dos debates, estava a publicação recente de sua quarta novela, Pais e Filhos. À frente dos debates, em campos opostos, estavam os representantes de duas gerações da intelectualidade que representavam duas etapas distintas na evolução da consciência revolucionária russa.


De um lado estava a geração de 1840, da qual fazia parte o próprio Turgueniev; de outro, a de 1860, representada por jovens cujo radicalismo parecia ir muito além da compreensão geração anterior.


A geração de 1840 era formada por liberais radicais cujas ideias foram diretamente influenciadas pela segunda onda das revoluções burguesas que começavam a tomar conta da Europa. Constituindo-se como republicanos e abolicionistas, estes jovens fizeram da luta pela libertação dos servos russos, o centro de suas preocupações. Turguêniev era um representante típico desta geração. Na adolescência foi um poeta romântico formado sob a influência da poesia política de Byron, foi amigo do anarquista russo Mikhail Bakunin e de intelectuais de proa da geração de 1840, figuras como Bielinski, Granovski, Stanquevitch, Nevérov e Efrémov, uma geração que teve uma importância capital na evolução da consciência política russa, sendo eles os responsáveis pela introdução do pensamento de Hegel em seu país. Em todas as suas ações e interesses, Turguêniev expressava a atitude crítica desta geração face à sociedade estabelecida russa. Jovem artistocrata, ele teve um relacionamento passional com uma serva, com quem teve seu primeiro filho; anos mais tarde, enamorou-se de uma célebre cantora, Paulina Viardot, mulher casada, mas por quem o escritor foi apaixonado por toda a vida. Mais tarde, após a morte de sua mãe, Turguêniev libertaria sem hesitação todos os servos de sua propriedade. Este seu veemente liberalismo iria se materializar com grande força em sua primeira obra-prima, o ciclo de contos Histórias de um Caçador, publicado em 1852, livro que teve uma extraordinária influência no País e tornou-se uma das bíblias de sua geração. Nestes retratos da vida simples dos camponeses russos expressavam-se seus ideais abolicionistas.


Após muita crise política, o decreto assinado pelo czar colocando um fim da servidão viria finalmente apenas em 1861, acontecimento que em grande medida, encerra a luta política que havia se tornado a força motriz do desenvolvimento da geração de 1840. O próprio Turguêniev, apesar de ainda escrever grandes livros nos anos seguintes, ingressaria em um processo de decadência intelectual. De um modo ou de outro, o escritor sempre expressou em seus livros, sua falta de confiança na efetividade da luta prática. Ele amadureceu como um retratista do fracasso das lutas de sua geração em defesa do ideal que todos cultivavam. Essa concepção era fruto das próprias experiências de sua geração aliadas com uma incompreensão das causas que realmente haviam levado à reforma, que apareceu diante de todos como uma iniciativa “benevolente” vinda de cima, sem qualquer relação com a crise aberta em grande medida pelo trabalho de luta e denúncias destes intelectuais em seus jornais, artigos, e romances, no caso de Turguêniev.

Estes problemas estariam na base dos conflitos entre os homens da época de Turguêniev e a geração seguinte.


Apesar da emancipação dos servos ter levado a uma dispersão dos intelectuais de 1840, a reforma promovida pelo czarismo revela-se nos anos seguintes uma farsa. Os mais de vinte milhões de camponeses, após alcançarem sua “libertação”, viram-se atirados à miséria mais completa e submetidos a um processo de exploração ainda mais agressivo do que antes. Esta conclusão provocou uma profunda desmoralização naqueles homens de 1840 e esta foi a linha divisória entre eles e a juventude que atinge sua maturidade em 1860.


A nova geração da militância russa atinge sua maturidade política no período imediatamente posterior à reforma, concluindo daí que eram necessárias atitudes muito mais radicais para se sanar o problema da miséria russa, que era o centro de todos os debates.

Para formular suas conclusões políticas, eles de fato vão muito mais longe em suas críticas ao czarismo do que foi capaz a intelligentsia de 1840. Suas críticas estendiam para todas as esferas da vida social e para todas as instituições czaristas, incluindo aí a elaboração de um programa artístico extraordinariamente radical. Para estes jovens críticos, a “técnica” artística deixa de ter qualquer importância nas obras, analisando tão somente qual o conteúdo social que ela expressava. A partir daí, toda a literatura russa foi submetida a um profundo processo de revisão. Escritores como Pushkin e Lermontov foram taxados como decadentes, tidos como escritores que adornavam com forma artística ideias sem qualquer interesse geral para sociedade. A parte dos muitos equívocos e injustiças que tais críticas realizaram, foi um processo muito importante na formulação de um programa revolucionário, com diretrizes que colocavam no centro da discussão o compromisso do homem russo - em qualquer esfera de atividade em que se encontrasse -, com o povo e a luta pelo desenvolvimento nacional.


Não era, portanto, estranho de se perceber o quanto este radicalismo profundo parecia incompreensível ao pensamento mais moderado dos liberais de 1840. Turguêniev em particular havia se formado como um grande admirador da forma artística, autor de uma literatura que primava pela concisão, precisão e clareza das ideias, um discípulo de Flaubert e um grande esteta literário.
Ele mantinha também uma série de valores que eram totalmente desprezados pela geração de 1860. O contraste entre os pontos de vista das duas gerações era justamente o centro da história que se desenvolvia em Pais e Filhos.